quinta-feira, 17 de abril de 2014

Artigo * A teimosia de escrever


Ricardo Gondim

Escrevo quase todos os dias. Não cumpro nenhum ritual ao me sentar para essa hora sagrada. Não rogo a Deus por inspiração. Nunca medito. Uma compulsão me arrasta para o teclado e começo. Simplesmente. Daí em diante, deixo de ser dono dos pensamentos. Na maioria das vezes eles me dominam. Tem dias que chego ao teclado com uma frase mal esboçada – frase sem gabarito de sentença. Basta rabiscar as primeiras idéias e algumas palavras já se rebelam, seguindo o próprio curso.

Escrevo por me sentir desafiado pela metáfora. Fico fascinado por figuras de linguagem, que não só ilustram como revelam os conteúdos mais intensos da palavra. Na metáfora, amor vira lobo que anda em circulo para alimentar a matilha. Saudade invoca a dor de arrumar o quarto do filho que já morreu. Paz e criança dormindo se igualam. Deus se incorpora numa sarça em fogo, que não se consome. O paraíso fica nas margens de um rio juncado de árvores cujas folhas servem para a cura das nações. Achar a metáfora inédita se transforma, portanto, no maior desafio de quem ousa desafiar as palavras.

Escrevo porque acredito na palavra impressa. Só na grafia está o poder de derrubar tiranos, enaltecer a justiça, destruir preconceitos e expandir consciências. Os discursos são impermanentes. As verborragias se diluem, inconsequentes. Os colóquios não subsistem ao tempo. A palavra escrita permanece viva e eficaz. Os livros sobreviverão ao mundo virtual. Até os melhores tribunos precisam redigir seus discursos. Os mais eloquentes pregadores corrigem a fala antes de subirem ao púlpito. O escrito escondido confere densidade ao palestrante que os ouvintes sequer imaginam. Quem escreve nunca tagarela. O contrário também é verdadeiro, o discurso só pode ser considerado bom se conseguir virar texto.

Escrevo sem saber o impacto do texto. Sei que serei filtrado por diferentes análises, em diferentes contextos, a partir de diferentes preconceitos e com diferentes expectativas. Acredito que a palavra nunca retorna vazia para o criador. Antes provoca curiosidade, discordância, aceitação, crítica. Tudo o que se redige fica e desafia para uma reflexão mais profunda. A palavra, espada de dois gumes, divide, salva e mata. O bom escritor, hábil esgrimista, só carece de uma estocada para deixar o leitor de joelhos.

Nas vezes em que autografei livro em alguma livraria, eu sabia que sob o olhar de gigantes como Shakespeare, Camões, José de Alencar, Machado de Assis, Rubem Braga e Graciliano Ramos eu era o menor. Leio suas obras e reconheço: não passo de um aprendiz entre gênios de primeira grandeza. Ouso publicar, postar e divulgar minha redação por acreditar que vale a pena deixar um pedaço da alma para a próxima geração.


Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente nacional da Igreja Evangélica Betesda

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