segunda-feira, 12 de maio de 2014

Artigo * Racismo, mal permanente


Ricardo Gondim

A formação cultural brasileira contém graves deformações. Nos primórdios da colonização,  índios e negros pagaram um preço absurdo para que existisse uma nação que fala português, come farinha de mandioca e tem compulsão por se banhar. Injustiças perpetradas contra Tamoios, Tupinambás, Tupiniquins, Tabajaras e tantas outras etnias marcaram os primeiros séculos do que viria a ser o Brasil. Esses povos sofreram horrores em nome da “civilização”.

Os negros também pagaram um preço incalculável. Quem foram eles? Segundo Nina Rodrigues os escravos brasileiros vieram de três grandes grupos: 1) Os da cultura sudanesa, principalmente os Yorubas ou Nagôs; 2) os Peuhuls, vindos do norte da Nigéria, também chamados de Malé; 3) e os negros do grupo congo-angolês, principalmente os Bantus, sequestrados de onde hoje fica Angola.

Em “O Povo Brasileiro – A Formação e o sentido do Brasil” (Cia das Letras) – Darcy Ribeiro  descreve os horrores sofridos pelos negros. A obra de Darcy Ribeiro não visa suscitar ódio ou ressentimento, mas colocar as novas gerações em contato com o lado feio da história – para que ela não se repita. Sua pesquisa continua pertinente, pois ainda se percebe, séculos depois, descendentes de escravos vivendo, em larga escala, sub-empregados ou amontoados em favelas. Negros veem, mais que os de pele branca, os filhos presos, assassinados e excluídos. Eles ainda são chamados de “gente de cor”. Piadas racistas não param de circular entre pequenos burgueses.

O Brasil se formou carente de escravos. E foi um dos últimos países do planeta a erradicar esse cancro social. Na época em que Castro Alves recitava “O navio negreiro”, considerava-se o fim da escravidão uma ameaça. “Quem cuidará dos canaviais? Só irresponsáveis desejam desestabilizar a economia”. Os escravocratas se esforçaram para que negros não deixassem de ser um patrimônio, propriedade negociável no mercado. Eles insistiam para que o Brasil não saísse abruptamente da escravatura, mesmo que seres humanos fossem tratados como bestas de carga. (Passados tantos anos, os que defendem o pobre ou se preocupam com justiça social no Brasil ainda ganham o rótulo de comunista ou socialista, como se as duas palavras significassem uma lepra.)

Por que o racismo, um mal tão hediondo, resiste? Entre vários fatores, uma resposta possível seria: no Brasil as elites se especializaram em defender o direito de propriedade. Para elas, o capital sempre valeu exponencialmente mais que a vida. O pobre tem pouco valor porque produz pouco – e agora, numa economia liberal, consome pouco. Os negros, os primeiros pobres da república, depois de livres, foram abandonados à margem –  podiam ser desperdiçados. No Brasil, prevaleceu a lógica: “Enquanto as conquistas patrimoniais forem preservadas, dane-se o povo”.

O relato de Darcy Ribeiro é preciso e chocante:
Conscritos nos guetos de escravidão é que os negros brasileiros participam e fazem o Brasil participar da civilização de seu tempo. Não nas formas que a chamada civilização ocidental assume nos núcleos cêntricos, mas como as deformações de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna. Por mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade, jamais se alcançou, nem mesmo se aproximou dele, porque pela natureza das coisas, ele é inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas a produzir gêneros exóticos de exportação e de valores pecuniários aqui auridos….

A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável.Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação do seus interesses.

O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia ser até alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.

Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentido que é violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. ‘Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados’, diz um observador alemão, ‘e se desprezássemos a primeira iniquidade a que os sujeitou, isto é, sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem os seus senhores’. Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma vigilância perpétua e da vigilância atroz da punição preventiva.

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente, bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, do lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio – inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar; na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sub trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ele é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar, e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

Brasileiros – todos nós – são herdeiros desse sistema; e são algozes e vítimas. Restam duas atitudes: a) lutar para que tal nódoa passe a ser considerada uma excrescência inadmissível, e que todo sinal de racismo seja crime contra a humanidade; 2) pedir coragem a Deus para que possamos, a partir desses escombros históricos, construir um Brasil mais justo, principalmente, para os descendentes negros.

Soli Deo Gloria


Ricardo Gondim é escritor e teólogo,  presidente  da Convenção Betesda Brasil

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