domingo, 24 de agosto de 2014

Quem procura acha! * Por que os judeus estão preocupados

Setenta anos após o Holocausto, muitos na Europa não se sentem mais seguros em razão de ações antissemitas

Soldados israelenses em marcha para invadir a  Faixa de Gaza - imagens da Web
Deborah E. Lipstadt/The New York Times - O Estado de S.Paulo - Há uma velha piada judaica que diz: "Sabe a definição de um telegrama judeu? 'Comece a se preocupar. Seguem detalhes'".

Com frequência, colegas judeus me questionam sobre as atuais manifestações de antissemitismo, particularmente na Europa: "É como em 1939? Estamos próximos de outro Holocausto?". Até o momento, minha resposta tem sido um não inequívoco. Tenho criticado líderes da comunidade que, ou por legítima preocupação ou para chamar a atenção para propósitos pessoais, usam analogias do Holocausto para descrever as condições atuais. Tais pretensões são a-históricas. Elas exageram o que acontece no momento, e reduzem a importância da situação em 1939.As diferenças entre aqueles tempos e os atuais são desmedidas.

Atualmente, quando há um surto de antissemitismo, as autoridades o condenam. O que dista anos luz do que acontecia nas décadas de 30 e 40, quando os governos não só calavam como eram cúmplices.

No mês passado, os manifestantes a favor da Faixa de Gaza em Berlim gritavam: "Judeus, judeus, porcos covardes". Os manifestantes em Dortmund e Frankfurt berravam: "Hamas, Hamas, os judeus para o gás!" Um manifestante a favor do Hamas em Berlim saiu da multidão e atacou um homem mais velho que estava parado numa esquina com uma bandeira israelense.

Algumas semanas atrás, foram postados cartazes em Roma pedindo o boicote de 50 empresas de propriedade de judeus. Na semana passada, no centro de Londres, manifestantes contra Israel tomaram como alvo uma mercearia da rede Sainsbury's, e o gerente, instintivamente, tirou os produtos kosher das prateleiras (a rede depois se desculpou). Seria simplista ligar as ofensas aos acontecimentos em Gaza.

Mas esta tendência está sendo bastante clara há algum tempo. Em março de 2012, quatro pessoas foram mortas numa escola judaica em Toulouse, na França. Em dezembro de 2012, as autoridades israelenses alertaram judeus que pretendiam visitar sinagogas na Dinamarca a só usarem seus solidéus no interior do edifício.

Está se tornando cada vez mais comum turistas judeus na Europa Ocidental evitarem exibir algo que possa caracterizá-los como tais. Em maio, um mês antes do início do conflito em Gaza, quatro pessoas foram mortas a tiros no Museu Judaico de Bruxelas.

Os que tentam reduzir a importância do que está acontecendo como "nada mais que retórica" não me convencem. Afinal de contas, é a linguagem que está no centro da transferência ubíqua da indignação pela ação militar israelense para o ódio pelos judeus.

Tampouco me consola a explicação de que estas ações são realizadas por "jovens muçulmanos descontentes". Segundo uma estimativa, 95% das ações antissemitas na França são cometidas por jovens de ascendência árabe ou africana. Muitos desses muçulmanos nasceram na Europa, e muitos dos que não nasceram, são os pais de uma nova geração de europeus.

É verdade que este não é o antissemitismo dos anos 30, que nascera da direita e estava arraigado na visão secular cristã que demonizava os judeus. Tradicionalmente, o Islã não tratou os judeus dessa maneira.

Mas no século passado, apareceu uma cepa distinta de antissemitismo muçulmano. Surgida com base na antipatia pelos não muçulmanos, ela mescla o antissemitismo cristão - levado para o Oriente Médio pelos missionários europeus - e uma forma secular, mais esquerdista, de antissemitismo. Ela é evidente nas tiras de conteúdo político, nos editoriais, nos programas de televisão e nos artigos dos jornais.

A cartilha do Hamas é um exemplo. Ela contém referências a Os Protocolos dos Sábios do Sião, um documento notoriamente falso, criado pela polícia czarista russa em 1903, e posteriormente usado como propaganda nazista. O documento acusa os judeus de usar sociedades secretas para fomentar os desastres econômicos e políticos globais. E insta os seus sequazes a se prepararem para "a próxima rodada com os judeus, os mercadores da guerra".

A fundamentação lógica - "nada além de retórica", "são apenas muçulmanos" - me incomoda quase tanto quanto as ofensas. Em vez de tentar negar estas ações, os principais expoentes da cultura, da religião e das academias dos países onde estes fatos ocorrem deveriam ficar profundamente abalados, não apenas a respeito da segurança de seus vizinhos judeus, mas também do futuro das sociedades abertas, aparentemente liberais, às quais eles pertencem.

Mas quando o porta-voz do Hamas reiterou sua declaração de que os judeus usaram o sangue de crianças não judias para seu matzo - uma das mais antigas mentiras antissemitas em circulação - as elites europeias se mantiveram em grande parte em silêncio.

Setenta anos após o Holocausto, muitos judeus da Europa não se sentem mais seguros. Contratar um segurança para proteger pessoas que vão à sinagoga para a oração não é o que um povo seguro faria. A França registra um considerável aumento do número de judeus que decidiram emigrar (embora os dados ainda sejam bastante reduzidos).

O telegrama chegou. Os judeus estão se preocupando. Está na hora de os que prezam uma sociedade livre, democrática, multicultural e educada fazerem o mesmo. Não se trata de novo Holocausto, mas é uma situação muito ruim. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK


Deborah E. Lipstadt é escritora e professora de História Judaica Moderna e Estudos do Holocausto na Universidade Emory.

Nenhum comentário:

Postar um comentário