terça-feira, 12 de maio de 2015

Cada instante vale uma eternidade

por Ricardo Gondim

Acordo. Abro a janela. O sol invade o quarto sem pedir licença. Uma torrente de luz expulsa os vestígios da noite. Lavo o rosto; as lágrimas, não percebidas, devem sumir. Perfumo os braços fadigados das lutas inglórias. A vida se adensa.

Não antecipo nenhum evento extraordinário. Sou tomado tão somente pela alegria de notar o dia escancarado. A simples satisfação de viver já é um milagre. Repito para mim mesmo que nenhum mal será capaz de sufocar o sorriso que vem da absoluta gratuidade de existir.

Noto que as próximas vinte e quatro horas serão curtas. Minha efêmera felicidade terá mesmo vigor de encarar qualquer pavor? Me lembro das palavras: "Basta a cada dia seu próprio mal". A alvorada renovou o mistério de me sentir pronto para o notável desafio de viver? Tenho sede de beleza. Quero sorver, da simplicidade dos meninos que se beijam roçando o nariz duas vezes, ao altruísmo de quem abriga a prostituta enferma, ao empenho do enfermeiro que faz serão junto do que agoniza, à resiliência da mulher que empurra a cadeira do que padece de Alzheimer.

Diante do imponderável, prometo me mostrar destemido. Repito: o imprevisível não me ameaça. Não pretendo parar a dança porque alguém me alerta do perigo. Me disponho a enfrentar qualquer despenhadeiro. Todo novo começo é, na verdade, continuação de existências e histórias que já experimentamos. Antes de mim, a vida pulsava. Um longa história me antecedeu. Se nunca sei como terminará a corrida que me foi proposta, tenho certeza que um legado ficará para o que me suceder.

Convivo tanto com o céu como com o inferno. Tormento e esperança habitam as pessoas que me rodeiam. Os olhos do outro são frestas que revelam os monstros e os deuses da profundidades da alma. Cada pessoa que conheço é, ao mesmo tempo, espelho de uma gentileza e possibilidade da barbárie. Acontece que eu sou o próximo de alguém; e para ele posso ser santo ou depravado. Vivem em mim personagens esplêndidas e sórdidas. Sei o dever de representar diversos papeis. Com maestria consigo me transformar no que quiser: herói ou vilão. Confesso: muitas vezes erro na hora de trocar as máscaras. Adoro a Deus e simpatizo com a esperteza da serpente.

Celebro o próximo fôlego. Faço festa com os retalhos coloridos dos lençóis que um dia me agasalharam. Transformo os andrajos de minha história em bandeirolas de quermesse. Necessito de uma prosa gentil para enfeitar os novos salões por onde passeio agora. Permito que o velho que resiste em mim recite aforismos antigos. Não esqueço, porém, do menino dos "por quês"; ele não pode desistir de continuar meu companheiro.

Se algum lamento se intrometer nos instantes frágeis de minha existência, devo transformá-lo em versos.

De tão contente, me faço poeta. Acendo uma vela – desejo criar um ambiente bucólico. Tiro a prataria da gaveta e limpo as taças – quero a liturgia do pão e do vinho. Saio por atalhos e vielas. Distribuo convites em busca de gente que goste de roda de conversa. Ansioso por ler e ouvir poesia, anelo juntar um sarau sagrado para brincar de rima e ouvir Deus.
O sol nasceu hoje como um convite à meditação. Em algumas horas, no momento breve em que as trevas engolirem a luz, volto a pensar no milagre de existir. Faço um voto na viração do dia: – Prometo recitar poesia com a delicadeza que as palavras merecem, ouvir música de olhos fechados e sentar à mesa como se fosse a minha última ceia.

Soli Deo Gloria


Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: ricardogondin2@gmail.com

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