domingo, 28 de agosto de 2016

Hospitalidade, disciplina e virtude

Ricardo Gondim

A Bíblia hebraica, que os cristãos chamam de Antigo Testamento, contém dois versículos com o mandamento de amar o próximo e mais de trinta para amar o estrangeiro. Abraão albergou peregrinos em sua tenda sem saber que eram anjos de Deus. O Testamento cristão, chamado de Novo Testamento, contém inúmeras passagens sobre hospitalidade. Paulo a incluiu como traço essencial no caráter do líder nas comunidades primitivas. As primeiras ordens monásticas tinham como premissa básica receber quem batesse na porta, sem indagar a condição que os levava a procurar abrigo.

Há dias venho matutando sobre hospitalidade. Sem pensar religiosamente, considero hospitalidade uma das virtudes mais belas de nossa frágil construção humana. Ela implica em renunciar certos confortos para acolher quem se encontra desprotegido. Entendo que o hospitaleiro se disciplina a abdicar o conforto do seu espaço para receber o sem teto, o despatriado, o excluído social. Hospitalidade aceita a inconveniência de conviver com quem não foi convidado para a festa. Onde apenas os bem aceitos ou bem reconhecidos seriam bem-vindos, alguém com essa disciplina faz o ambiente tornar-se inclusivo.

Ouso pensar em um tipo de hospitalidade racional. Ela seria um traço das pessoas com coragem de criar algum espaço em suas convicções mais caras em nome da coexistência. Pode ser também hospitaleiro aquele, ou aquela, que permite abrir qualquer fresta em suas certezas. Ele acomoda o outro e deixa que ele encontre a possibilidade de colocar suas opiniões. Caso permita alguma rachadura na sala hermética de minhas certezas, e ouço o diferente, principalmente se ele vem de uma opressão, talvez, areje minha busca pela verdade. Aliás, compaixão (sofrer junto) tem muito a ver com a disposição de arriscar o próprio inferno para oferecer coração e braço a quem sofre.

O cristianismo começou como uma espiritualidade lincada à hospitalidade. Jesus não se mostrou constrangido ao fazer ajustes na cultura que herdou, na religião em que foi educado ou nas pregações que proferira quando a situação do estrangeiro (a mulher siro-fenícia), do excluído (a mulher apanhada em adultério) ou do discriminado (leprosos) estava sob ameaça. Aliás, não há justiça sem a pratica da hospitalidade. Antes de nascer o desejo de ver o direito do oprimido restabelecido, é necessário que já preexista a vontade de abrir mão de qualquer conforto em nome do injustiçado.

Tenho um exemplo melhor. No livro de Tom Sawyer, As Aventuras de Huckleberry Finn, o personagem fica amigo de  um escravo chamado Jim. Ao ver o amigo fugir, Huckleberry não saber ao certo como proceder. No culto, ouve um sermão ainda hoje esquisito. O pastor avisa de púlpito que quem não denuncia escravos fujões vai para o Inferno. Huckleberry, num rasgo de autêntica hospitalidade, diz para si mesmo: Vou pro inferno, então.

Nessas divagações, pergunto: quem, nos dias atuais, se voluntaria, não a mandar, mas a provar o inferno para que palestinos, homossexuais, muçulmanos, refugiados, indígenas e tantos outros marginalizados se sintam acolhidos?

Soli Deo Gloria


Ricardo Gondim é escritor e teólogo,  presidente  da Convenção Betesda Brasil. E-mail:  ricardogondin2@gmail.com

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